Hereditário

Olás.

Notícias do plano B: participei dum concurso de contos, do projeto Vamos Ler o Mundo, que é uma extensão da Secretaria de Educação de Porto Seguro e coordenado pela Doutora em Língua Portuguesa Bety Stifelmann, em parceria com a Via Literária. Foram selecionados 50 contos para coletânea do concurso, cujos autores ganharão uma menção honrosa, o primeiro (ainda não revelado) receberá um prêmio de R$ 1.000,00 cruzeiros reais. Participantes: 1293 contistas, com um total de 1734 contos.

Ainda não saiu oficialmente, recebi um e-mail dos organizadores informando que o conto está no páreo. Em 2003, fui publicado na coletânea de poesias do concurso "Poetas de Gaveta - 2003" que reunia docentes, discentes e funcionários dos campus USP do interior do estado.

Bom, abaixo segue o conto:

"Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo."
Carlos Drummond de Andrade. 






Hereditário



Qual meus pais, sou um homem triste. Se sou um homem, não sei, tento, ao menos transparecer um... Não que tenha problemas com minha sexualidade, não: é que já estou beirando aos trinta anos e ainda tenho uma dependência umbilical – apesar de ter apenas o pai vivo – e isso não põe à prova as virtudes que um homem tem de ter para se dizer um.

O desalento é hereditário em nossa família, tanto na materna quanto paterna - mas, o suicídio, apenas na materna. Os mais velhos dizem que, ao nascermos, mal choramos ante as palmadas do médico, que têm de vir no plural, mesmo, senão não surtem o efeito esperado. Não reclamamos do colo das mães, não rejeitamos as enfermeiras: de toda forma está bom, ou quase toda. Demoramos a abrir os olhos e, quando o fazemos, já os temos baixos, longes, como que olhando com desdém o mundo já na primeira espiada. E carregamos esse desânimo pelo resto da infância, adolescência, até a maturidade, como que subindo a montanha rolando uma pedra e observando o horizonte que se desenha e é pintado.

Meu pai era médico e morávamos na mansão herdada do meu bisavô. Como médico, presta consulta a mim e a todos os seus parentes, que se dirigem a ele apenas por convenção familiar – ele mal nos olha, nos pergunta. Não cheguei a conhecê-lo, nos sentávamos juntos à mesa somente no almoço dominical, mas ele logo se recolhia à biblioteca e por lá ficava. Isso, antes da mamãe partir; depois, nem isso fazia: ficava recluso, em um autoexílio. Gostava de apreciar uísque.

Tenho um irmão, mas dele falarei mais tarde. Quanto a mim, tento combater meu egoísmo com esmolas. As capitalizadas ajudam momentaneamente: prefiro essas, pois, o pedinte, em meio a tantos que o ajudam, nos esquece facilmente a ponto de nos parar na volta. Esse altruísmo, na verdade, é a mim que faço, pois me sinto menos culpado e mais atuante. Um pouco mais de vida, só um pouco. Costumo praticar, também, doando tempo; ouvidos. Sempre que converso com pessoas, acabo mais ouvindo queixas do que falando, geralmente das reações que suas ações irracionais ou mal arquitetadas a impelem – mesmo quando as pago para estarem junto a mim. Doo tempo, mas vou para longe, fumo um charuto na fazenda vendo o caseiro matuto matar frango-caipira, sirvo-me de chave para que as pessoas se abram e deixem seus monstros saírem, enquanto passam os vinte minutos que não foram aproveitados e assim cumprir com o acordado e previamente pago. Ao entrar por essas portas, me liberto, também. Vivo essas estórias ao meu modo e percebo que essa minha privação do mundo é o próprio conceito de morte; é abiótica; é fome crônica.

Combater o egoísmo é mais fácil que combater o egocentrismo. Por saber do universo das possibilidades, acho mais interessante conhecer as escolhas e as possibilidades dos outros que fazer as minhas próprias e as arcar. Como um deus, não tenho vida, cuido e analiso a dos outros, como que num laboratório. As pessoas que não se preocupam com dinheiro acabam se apegando a cada trivialidade… sou um exemplo. Faço isso porque quero saber o que levou mamãe a sucumbir em si mesma, quais motivos impelem pessoas para esse caminho, quais desesperos. E é ai onde entra o meu irmão.

Hoje, ele estuda em outra cidade, também trabalha, e me parece que está noivo. Saiu daqui para estudar engenharia, mas como pretexto: o ambiente fúnebre que nos cercava não o deixou à vontade, el quando mamãe se foi ,ele quis ir estudar em um internato na Escócia. Voltou para o país e já se mudou para a capital, foi continuar os estudos lá. É bem diferente de nós, ele: é alegre, tem os olhos escuros como jabuticabas que colhem na fazenda. É comunicativo, desde criança todos já notaram e, às suas formas, estranharam.

Acho que ele não é filho do meu pai. Até há pouco, não sabia por que minha mãe não fugiu com o pai dele e foi feliz, enfim. Seria um escândalo em nossa pacata cidade, onde o casamento dos meus pais unificou o aglomerado de clinicas da região, e o divórcio poderia por fim à sociedade, o que, teoricamente, a levou a fazer isso. Um ato muito heróico, a meu ver, uma mulher apaixonada tirar a própria vida, pois ir viver com seu amor acarretaria prejuízos financeiros e morais à sua família. As pessoas que vêem o amor como um fim, soçobram. Ele tem de ser um meio para um bem-maior. Não estou falando que não se deva amar outra pessoa: sim, ama-se, mas, depois, paga-se e vai para casa. Fora isso, tem que se amar uma vida, um plano, um status; achar outra pessoa que amasse o mesmo mundo, então se apaixonar e furar um olho para não se enxergar tudo. Mamãe tinha os dois olhos vivos, e não suportou viver assim.

Ela bebeu inseticida na fazenda dos meus avôs, seus pais. Mas seu caixão fora velado fechado, dizem que para proteger meu irmão, pois o veneno deformara o rosto pálido. Era professora de língua inglesa e tocava piano contra sua vontade, sempre, na casa da vovó. “Amo todas as peças ao seu lado”, sussurrou ela, certa vez, com excessiva espontaneidade, “Mas esse jogo é uma tortura”. Nessa época eu já era jovem o suficiente para saber que ela não contava com papai ao seu lado, mas não compreendia que se apaixonara pelo rei-negro. Ela lecionava em uma cidade vizinha, para onde viajava uma vez por semana, mas pernoitava.

Sua depressão derradeira começou quando essas aulas foram interrompidas. Chorou uma semana seguida e nunca se recuperou. Durou um mês, até que, após uma discussão com meu pai (tinha-os visto discutir apenas uma vez, antes disso), fez uma pequena mala, nos deu um beijo e avisou que dormiria na casa da vovó. Na noite seguinte, ligaram de lá, e meu pai saiu de casa às pressas. Na manhã, mandaram-nos descer para o café da manhã de terno. À mesa, meu pai deu a notícia, pediu para que, se fôssemos chorar, para subirmos aos quartos e não mancharmos as roupas. Tínhamos 16 e 14 anos, eu sendo mais velho. Subi ao meu quarto, mas logo desci, e meu irmão mandou avisar que iria apenas à noite, já para o velório. Meu pai nunca se opôs às nossas vontades: hipocondríaco, escutava com olhar longínquo.

Chegariam a ser engraçadas as estórias familiares, as comédias familiares - ou anti-familiares - se o meu intuito aqui fosse formular um conceito tecnicamente. Que grande farsa não seriam essas estórias: me utilizo do termo teatral exatamente para expor tudo o que há de encenação épica, desde o correr de águas cotidiano, até quando elas se dividem.

O enterro ocorreu. Meu irmão viajou para o seu internato. Voltou e está na capital. Por esses tempos, recebi uma carta anônima: resumidamente, contava que minha mãe não morrera naquela época; que meu irmão não fora a internato algum, e sim viver com ela e seu pai em Londres (o pai dele viajara para lá e ela o seguiu). Argumentava que ela exigiu, com instinto animal, levar nós dois, mas fora obrigada a escolher um e deixar o outro para perpetuar a família. Agora, estava em estado terminal de câncer, na capital, onde vive com meu irmão, pois pouco tempo depois o pai dele a deixou.

Rasguei a carta. Não fui querer saber. É mais confortável continuar debruçado na minha realidade. Não sei como meu organismo suportaria mudar de mundo, assim, bruscamente, mudar de gravidade. Além do mais, agora, não faz a mínima diferença ela ter morrido há quinze anos ou morrer daqui a um.

O erro do meu pai foi ter tido filhos. Homens como ele não podem ser responsáveis por preparar a terra a outra semente, pois ela não crescerá. No mundo animal, ele não sobreviveria. Não fosse meus avôs arquitetarem o casamento, ou melhor, o negócio, ele estaria em seu consultório se masturbando até hoje ou já teria desenvolvido alguma patologia psicológica que o faria perder a vida precocemente. De homens com esse caráter, só poderia sair gente com o meu caráter: é como o capital, ou um pouco menos determinista. E ainda põe-se a culpa na genética. Por isso, também dou esmolas: sei o que é ter carências, sempre tive pão, mas nunca alguém que me alimentasse.

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12 comentários

  1. Cara tô torcendo bixo. Foda demais parabéns pra mim tu vai chegar com tudo na final

    Dá um carrinho nesses malditos

    Abração

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  2. depois de uns dias, finalmente tive tempo pra vir aqui te ler.

    muito legal! gostei e vou visitar mais.

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  3. Bem primeira visita e con fesso que não me decepcionei, acho que todos estamos presos as nossas respectivas hereditáriedades...

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  4. parabéns pra vc cara, arrebenta lá boa sorte

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  5. Você escreve muito bem mesmo!
    seguindo.

    Grande beijo!

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  6. Mais agradecimentos a todos. Porra, se conseguir ganhar grana com essa 'brincadeira' dai vou refutar a máxima do meu pai: Dinheiro=Suor, mas nem sempre Suor=Dinheiro.

    Pois é Prefiro-não-comentar, tem coisas que não tem com se livrar, apesar de crer no poder de re-invenção (ou re-programação)(ou re-condicionamento) das pessoas...

    Pior que o resultado só sai no final do mês que vem (julho).

    Valeu!

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  7. Que legal hein, boa sorte. Estou atrasada para minha pós, a noite quando chegar, leio seu texto com mais calma e comento tah. Bjs

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  8. Primeiramente, parabéns e sorte lá!

    E muito boom seu texto... muito bom mesmo.
    "Combater o egoísmo é mais fácil que combater o egocentrismo."
    Você escreve bem demais!

    Beijo.

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  9. espero que consiga o primeiro prêmio, o texto é ótimo.
    a história é quase palpável, orgânica, o tipo de absurdo que pode acontecer ali do lado.
    parabéns mesmo.

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  10. RapÁh, que legal. É Porto Seguro - BAhia? Se for, moro aqui pertinho, acabei de chegar de lá. Torço por vc. Arrebemta meuh.

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  11. Ahhh, ia esquecendo, sou aquela que comentou s eu texto (Hereditário), Rosa Cancian. Bjx

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